Textos

Um poema / Uma Lenda (extra-texto - história oral gaúcha).





   Quindin
  (A Pequena da casa grande)                                                                                             R: 202 547         
           
Estância cerca de pedras / Viver, era para os bravos...
Quem então nascesse escravo / Por nascer tinha pecado
O corpo a ferro marcado / A dor rangendo nos dentes
Embretado, ou a o reponte / Com a mesma sorte do gado...

A casa grande se impondo / Janelas e portas abertas
Conforto nos aposentos / Sala de estar arejada
Friso e beiral nas fachadas / Varanda imensa pros donos
Em frente, Jardins, gramados / Cordeiros brancos pastando...

A senzala, lá nos fundos  / Negros de faces fechadas
Rotina; todo trabalho  / Plantar-Colher, Courear, charquear...
Na Charqueada, fraquejar...: / O tronco estava à espera
Viver Ali;  uma Quimera / Morrer Ali;  um  Esperar 

Senhor, chamou  por Quindin / A mucama..., Uma "fulozinha"
Coisa mais Linda a Negrinha / Pretura “de um” Querubim
Pequena da casa grande / Ofuscante formosura
“Por trapo que lhe vestissem” / Mais se mostrava Pura


“Iaiá à mantinha por  perto / Pra se sentir mais segura”
E Quindin, ainda criança / Se revelou preparada
Mãos de fada; afinadas /  Coser-passar, cerzir, bordar...
Murmurando as cantigas / Da sua gente na  "“Labura”"


Um dia, de longe chegou / Um vestido desejado.
Que iaiá encomendou / Para um evento no condado
Feito em seda das índias / Em paris foi costurado
Laços, fitas, rendas, d´ouros / No decote, cravejado


Então Iaiá, Quindin chamou / Pra frisar aquela prenda
Encantada com o que viu /  Mesmo Mocinha,  distraiu-se
Num devaneio de criança / Brincando com uma trança
Demorou-se num desviu / Deixou queimar uma renda


No corpo desceu-lhe um frio / Mas com coragem contou
E Iaiá, o erro cobrou / Com sofrimento infinito...
Sem emitir um só grito / A "preturinha" Adorada
A ferro quente em brasa / Teve a sua pele marcada


Mãe velha lhe socorreu / Pros fundos lhe recolheu
Numa tarimba lhe acamou /  E por socorros buscou
Colheu raízes pro chá  / De perto lhe confortou 
Compressas lhe aplicou / Lhe cobrindo o ferimento

Águas frescas na testa / No rosto a mão velada
Noites em claros, mãe sonhada / Lhe aplacando o sofrimento
Mas tudo pouco adiantou / Qual um bichinho sofreu
Três dias depois morreu / Num cantinho da senzala


Por altiva, e saber rir / E  escrava, sentir-se livre
Sofreu por três longos dias / Um oceano de agonia
Criança com sangue bravo / Pagou igual a Jesus
Carregando a mesma cruz / Ferida com os mesmos cravos


“Ali era costumeiro  / Este feitio com escravos...”
(O capitão adentrou / E a puxou pro terreiro).
Com uma junta de bois  / Campo  fora, ao reponte
Pelo chão a arrastou / E, lá num fundão a jogou:
“Negro não tinha alma /  E na casa..., era cabal
Não tinha direito a nada / Sequer a um rito final”


Gente forte, corpos rudes / Corações suaves, mansos
Quanto esforço, desencantos  / Sonhos virado a nada
Corpos de mãos atadas / Direitos p`rum ser exangue:
Que se transborda em sangue / Em suor, em Negritude



O Minuano chegando  / Assobiou triste, e calou-se
O Preto Velho prostrou-se / Na raiz de um "figueirão"
O rosto entre as mãos / Cotovelos nos joelhos  
Os olhos, da alma espelhos / Num banzo de solidão


Lança  no coração   / Que a consciência  desnorteou
Quilombo que projetou / E se apagou da razão
O silêncio da paixão / O berro que não soltou
Esperança que se quedou / Qual as Lágrimas no chão


A tarde já enterrada   /  O horizonte turvando-se
Entre as grades da senzala / Se via o campo estender-se
E sua gente a o recolher-se / Gemeu um longo lamento

Dor profunda demorada / E as sombras; se aproximando
Noite adentro...  pranteavam / Espreitavam pros confins
Pra onde a Meiga Quindin / Foi jogada a o relento 


Horas mortas, uma luz desceu / Nas lonjuras do fundão
Invadiu a imensidão  / Brilhou,  e elevou Quindin
Reluzente a Querubim  /  Inundou o horizonte
Se fez luz, amparo, fonte  / Apagou a  escuridão: 

Aurora  em noite alta / Qual um sonho revelado: 
Um Arco Iris estrelado /  A Coroou,   num céu arcano
Cobrindo um Mundo Haragano / Levitou um ser  Dourado
Princesa, Criança Pura  / A  Sublime revelação

O Tratado da paixão / O Amor além da escritura
A Pretura mais  querida  / Coisa mais linda da vida
Mostrou-se em toda candura / Fez par a um Deus Moreno

Respingada de sereno / Transbordante de ternura
Formosura das formusuras... / das formusuras..., das formosuras...
Nos braços do Nazareno / Subiu ao céu, num clarão...



Nem um escravo dormiu / Naquela noite ventena
Que então se fez serena / Nos corações quais tambores
Seresta pra curar dores  / Um arraial de verbenas
Cantigas para a pequena / Embriagadas de amores
Um murmurar de louvores / Consternado, fagueiro...
O brilho Quente do braseiro / A Fragrância de Açucena


Noite fria, Madrugada  /   A boieira Enluarada...
La fora fez-se a geada   /     Gadaria ruminando
A criação se apertando  / Em rodeios na invernada
As ramadas desnudadas / Quietude das invernias
Todos os negros em vigia / Divagando a imensidão
Pulsares numa canção / Balanços de alegria
Aurora que pronuncia / Madrugada quer descanso
Faz Barra, num Brilho-Manso: / O Sol vai trazer o dia


A Tranca Cai Num Repente / Ranger de porta se abrindo
Tilintares de correntes / Chicote estalando rente
Chapéu tapando o semblante / Adentrou o Canastrão
Nunca olhou: “olhos nos olhos” / Pois era sua própria gente.
Gente Linda, Pele Negra / Luz nos olhos, Brancos dentes
Todos em pé, Imponentes / “Com  Nojo” do Capitão.


Ao passar na casa grande / Ao trabalho, em cantilenas
Uns rumando pra charqueada  / Outros  buscando a invernada
Sussurros, vozes serenas: /  Grandeza,  pra sentir  pena :
Um imenso casarão; / Toda  vista da esplanada
Lavoras, jardins, ramadas / Campos que se expandem
Mirantes pra vastidão / “E Os Donos...", (...gente pequena...).
                   


           (Lenda recolhida em Camaquã, e transformada em versos: - que encontrei esquecida em meus guardados).



                     Em 1991 ou 92, não lembro com exatidão; foi em uma parada desta cidade que encontrei este senhor simpático de pasta na mão; que depois do ritual - "de onde tu és - de onde é que eu sou" - me contou esta história.
                   


                     O crime: - Sem apetrechos, na ânsia de guardar na memória os detalhes do relato, que ouvi entre expressões, ora maravilhadas, ora ojerizadas, que por vezes marmorizavam-se no rosto do relator: - foi  esquecer do seu nome. Mesmo eu perguntando mais de uma vez, e mais de uma vez ele me respondendo; o esqueci total. Um senhor dos seus setenta anos,  morador das terras altas do interior do Alto Camaquã, que em seguida tomou o ônibus e seguiu seu destino.   Quantas histórias mais, ele não levou com sigo. Prometi procurá-lo, nunca pude faze-lo.


                     Embora saibe-se que em muitas fazendas de escravos, estes costumeiramente não tinha direito a praticar suas religiões, por outro lado tinham direito a funerais. No entanto, nesta fazenda da lenda, nos relata o contador de histórias que, os mortos eram puxados por juntas de bois para o fundo da fazenda, e deixados ao relento. Deduz-se que não tinham direito sequer a funerais religiosos.



                    É preciso deixar claro que, o Nazareno; que aparece já no ápice  da história, simbolizado pela palavra Jesus, cravos, cruz, e que dá uma visão  cristã; é provável que, se contada por descendentes de escravos da época em que o fato se deu; ouvir-se-ia a descrição de um  Deus, um Ídolo, ou um Mártir da mitologia Africana, e este por fim, levando Quindin consigo. Cheguei a anotar como opções, versões do tipo  “nos braços de um Deus moreno” ou “ pagou igual a Zumbi / porque altiva, sabia rir / e mesmo escrava, sentia-se livre”. Porém, permaneceu a versão cristã que a lenda com naturalidade  ganhou. 


             Arcano: Segredo - Recôndito - remédio secreto - ser, lugar, ou acontecimento misterioso.

           

             Banzo: Tristeza profunda, a qual acometia os escravos africanos, que muitas vezes morriam, vitimados pelo desamparo de viver cativo, distante da liberdade nas selvas e savanas africanas.

   

              Labura: - Licença poética, que vem  de labuta, que poderia ser labura, pois vem do Latim; labor, de laborar, ou labora, de onde vem lavora. Embora nas charqueadas houvessem plantações, estas não eram por costume expressivas;  não representavam o motivo econômico;  eram de subsistência; para manter a própria charqueada. Por isto, embora envolvessem uma pequena parte dos escravos - não é proibido recitar ou cantar em vez de: - sua gente na "labura"; sua gente nas lavouras.

               Haragano: Cavalo que dificilmente se deixa pegar - velhaco - que jamais será domado completamente:   madrinhão -  que gosta de andar livre..

              Quimera: Monstro de fábulas - incoerência - incongruência - absurdo.

            Tarimba: Palavra de origem africana: Cama improvisada em estrado de madeira rústica. 
                            

            
            O Capitão Do Mato: Individuo geralmente mulato e protegido do Senhor. Era usado para capitanear os escravos e até mesmo como comandante; caçá-los quando fugitivos. Não raro, era um filho encoberto do Senhor com a escrava mais bela de uma determinada época da Senzala. Por isto era protegido, e muitas vezes freqüentador da casa grande.


                            


            Quindin:  ...de Quindim, palavra de origem africana, que significa encantos, formosura, doçura, e que deu  nome a o maravilhoso doce brasileiro, com gemas de ovos e amêndoas, na origem africana; provavelmente recriado pelos próprios africanos no nordeste, com coco ralado, como o conhecemos. No Aurélio, quindim, além da dar nome a o doce, significa também; Graça,  doçura, meiguice, encantos, suavidade, benzinho, amorzinho... entre outros predicados que expressam amabilidade.    No vocabulário que,  Renato Mendonça publicou em seu livro: - A Influencia Africana No Português Do Brasil -  Quindim é; entre outros predicados amáveis; meiguice, enfeite... E no plural expressa pequenas dificuldades (cotidianas): - "meus quindins": (meus afazeres).  



         www.Otacilionh.blogspot.com.br         Quindin - R: 202 547                          

                                      
                                                           Novo Hamburgo
                     
                                                                      Primavera 2012

                                                                                Inverno 2013    
                                                                                       
                                                                                       


                                                                              Otacílio Óta Alves Meirelles













                         

         

4 comentários:

  1. Lindo o poema! Lindo e emocionante. Dói no coração de saber que a verdade é esta. "Os maiores, são pequenos"... Um beijão Otacílio! Continua postando textos como estes, e também os da tua autoria, que sei que existem muitos! As pessoas vão gostar. Muito legal teu blog. Parabéns!

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  2. Oi Otacilio, estou emocionada que texto lindo e surpresa com tamanha sensibilidade da sua pessoa. Se já te admirava por saber da sua pessoa culta, tua sensibilidade é de muita grandeza. Estarei te acompanhando no teu blog e poste mais textos estarei aguardando.
    Receba meu carinho e admiração.
    Parabéns! !!! Abraços.

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  3. Obrigado Mágda - este texto eu exponho somente no dia da negritude, mas desta vez vou deixá-lo aí mais um pouco.

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  4. Outras curiosidades matemáticas, aconselho
    o Site: MATEMÁGICAS

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